sábado, 13 de novembro de 2010

 
 
Calvino é considerado, de um modo geral, como um sistematizador frio e impassível, um cérebro, em vez de uma pessoa, uma figura introspectiva e socialmente isolada que se sentia mais à vontade no mundo das idéias do que no mundo real de carne e osso, o mundo das relações humanas. A concepção popular sobre o pensamento religioso de Calvino é a de um sistema rigorosamente lógico, centrado na doutrina da predestinação. Embora essa crença popular possa representar um pensamento de grande influência, ela guarda pouca relação com a realidade; ainda que a doutrina da predestinação possa ser importante para o posterior movimento Calvinista, isso não está refletido na exposição de Calvino sobre essa idéia. Porém, essa crença popular levanta um importante questionamento. Alguém pode falar a respeito do pensamento de Calvino como sendo, acima de tudo, um sistema! A palavra "sistema" implica pressupostos acerca de unidade. Ela requer coerência. Contudo, Calvino compartilhava do profundo desgosto característico da república humanista das letras pelos teólogos escolásticos, cujos lemas parecem haver sido "sistematização" e "coerência". Referir-se a Calvino como um sistematizador teológico implica um grau de afinidade com o escolasticismo medieval, o que contradiz suas próprias atitudes. Isso também sugere uma significativa descontextualização entre Calvino e sua cultura, a qual não possuía os recursos intelectuais nem percebia qualquer razão em particular para produzir obras de "teologia sistemática" - um gênero literário que era, de qualquer forma, reconhecido como uma reserva do tão desprezado Escolasticismo. Apenas através de uma postu¬ra que considera as Institutas como sendo consistentes com o Humanismo bíblico da época de Calvino, em vez de uma radical exceção a ele, torna-se possível apreciar o pleno significado da obra.

Certamente é fato que as Institutas de 1559 têm sido, freqüentemente, comparadas à Summa Theologiae de Tomás de Aquino - com suas 512 questões, 2.669 artigos e mais de 10.000 críticas e réplicas - em termos de sua abrangência e influência. Contudo, isso significa confundir, evidentemente, o volume literário e a influência histórica com a afinidade teológica. Como indica um estudo do desenvolvimento das Institutas, originalmente Calvino concebeu a obra em termos modestos, sem quaisquer pretensões de uma abrangência metodológica. A reorganização do material entre uma edição e outra, no período de 1536 a 1559, reflete uma preocupação pedagógica, e não metodológica; o interesse de Calvino é humanista, em vez de escolástico

- ou seja, o de auxiliar seus leitores, e não o de impor um método a seu próprio pensamento. As Institutos de 1559 combinam as virtudes cardeais do educador humanista- clareza e compreensão - permitindo a seus leitores o acesso a uma apresentação clara e abrangente dos principais pontos da fé cristã, da maneira como Calvino desejava que fossem entendidos. Em ponto algum há qualquer evidência que sugira que um princípio dominante, um axioma ou uma doutrina - exceto o da clareza da apresentação - tenham controlado a forma ou a substância da obra. Esta é uma expressão da eloquentia, tão valorizada pela Renascença, tanto em sua estrutura quanto em sua prosa.

O estudioso que, por quaisquer motivos, pressupõe a existência de um princípio unificador no pensamento de Calvino está, naturalmente, predisposto a encontrá-lo. As pesquisas acadêmicas sobre Calvino apresentam uma série de estudos que, presumindo a existência de um princípio unificador no pensamento de Calvino, procederam à identificação deste princípio em suas doutrinas da predestinação, do conhecimento de Deus ou em sua eclesiologia.10 Um enfoque mais modesto (e, deve-se dizer, mais realista) consiste em admitir o óbvio e em aceitar que não há qualquer doutrina central no pensamento de Calvino.11 Apropria idéia de um "dogma central" tem suas origens no monismo dedutivo do Iluminismo, e não na teologia do século 16. Alguém pode identificar, com certeza, certos temas de importância central, certas metáforas essenciais que permitem alguma compreensão acerca do pensamento de Calvino - porém, a noção de uma doutrina central ou de um axioma que o controle não pode ser sustentada. Não existe algo como "o cerne", "o princípio básico", "a premissa central" ou "a essência" do pensamento religioso de Calvino.

Contudo, é evidente que, em toda a sua discussão sobre o relacionamento de Deus com a humanidade, Calvino considera um único paradigma como normativo. O paradigma em questão é aquele que foi obtido através da encarnação, mais especificamente através da união, sem a fusão, da divindade e da humanidade na pessoa de Jesus Cristo. Repetidamente Calvino apela para a fórmula baseada na cristologia, distinctio sed non separatio, significando que as duas idéias podem ser distinguidas, mas não separadas. Assim, o "conhecimento de Deus" e o "conhecimento de nós mesmos" podem ser diferenciados, mas não podem ser alcançados de forma isolada, um em relação ao outro. Da mesma maneira que a encarnação representa uma manifestação paradigmática dessa complexio oppositorum, o mesmo padrão é, assim, repetido e deve ser percebido através das várias manifestações do relacionamento entre Deus e a humanidade. Pelo fato de enfatizar que a teologia é centrada no "conhecimento de Deus e no conhecimento de nós mesmos" (Institutas I.i.l), esse paradigma é, obviamente, relevante. Em todas as suas obras, Calvino demonstra uma forte tendência de distinguir, de forma radical, as dimensões divina e humana - insistindo, contudo, em sua unidade. Não há qualquer possibilidade de se separar Deus e o mundo ou Deus e os seres humanos.

Pode-se perceber esse princípio em ação do início ao fim das Institutas: a relação entre a Palavra de Deus e as palavras dos seres humanos, na pre¬gação; entre o símbolo e significado da eucaristia; entre o fiel e Cristo, na justificação, onde existe uma real comunhão de pessoas, ainda que não haja a fusão dos seres; entre o poder secular e o espiritual. O pensamento de Calvino é dominantemente cristocêntrico, não apenas pelo fato de que ele se centraliza na revelação de Deus em Jesus Cristo, mas também porque essa revelação desvenda um paradigma que governa outras áreas centrais do pensamento cristão. Onde quer que Deus e a humanidade entrem em contacto, o paradigma da encarnação ilumina esse relacionamento. Se existe um ponto central no pensamento religioso de Calvino, este pode, perfeitamente, ser identificado como sendo o próprio Jesus Cristo.

Sugerir que não é inteiramente apropriado designar o pensamento religioso de Calvino como um "sistema" não significa, de forma alguma, que este não possua coerência ou consistência interna. Ao contrário, significa ressaltar a habilidade com que Calvino, agindo aparentemente mais como um teólogo bíblico do que filosófico, foi capaz de integrar uma série de elementos na estrutura global de seu pensamento. Ele pode não ter desenvolvido um "sistema teológico", no sentido estrito do termo; entretanto ele foi, indubitavelmente, um pensador sistemático, que reconheceu plenamente a necessidade de assegurar a consistência interna, entre os vários componen¬tes de seu pensamento.

À medida que Calvino envelhecia, surgia uma nova preocupação com o método. Ocorreu uma alteração significativa no clima intelectual, conforme se desenvolvia um novo interesse humanista por questões metodológicas, com o efeito essencial de que a sistematização não era mais considerada a reserva exclusiva dos tão abominados teólogos escolásticos. Em parte, isso se deve à crescente influência da escola humanista de Pádua, cuja ênfase sobre a importância do método (e das contribuições de Aristóteles a essa ciência) alcançou uma audiência progressivamente favorável, ao final da Renascença. Se pretendesse manter a respeitabilidade e a credibilidade intelectual, o Calvinismo tinha que se adequar ao novo molde sistemático. Os sucessores de Calvino, ao final do século 16, confrontados com a necessidade de impor um método ao seu pensamento, descobriram que sua teologia era eminentemente adequada a uma readaptação, dentro das estruturas lógicas mais rigorosas sugeridas pela metodologia aristotélica, a qual era privilegiada ao final da Renascença italiana. Isso, talvez, tenha conduzido à conclusão precipitada de que o próprio pensamento de Calvino possuía a forma sistemática e o rigor lógico da ortodoxia reformada do período posterior e tenha permitido que a preocupação da ortodoxia, sobre a doutrina da predestinação, fosse imposta às Institutas de 1559. Como devemos sugerir, há uma sutil diferença entre Calvino e o Calvinismo nesse aspecto, assinalando e refletindo uma reviravolta relevante na história intelectual em geral. Se os discípulos de Calvino desenvolveram suas idéias, isso ocorreu em resposta a um novo espírito da época, o qual considerava a sistematização e a preocupação com o método como intelectualmente respeitáveis e desejáveis. O Luteranismo falhou em reconhecer a importância dessa decisiva mudança no contexto intelectual; na época em que os escritores luteranos adotaram os novos métodos, praticamente uma geração inteira havia se passado e a superioridade do Calvinismo parecia certa

Antes de considerar as principais características do pensamento de Calvino, pode ser útil identificar pelo menos algumas das influências mais relevantes sobre as suas idéias. Em primeiro lugar, deve-se ressaltar que Calvino é um teólogo bíblico. A primeira e mais relevante fonte de suas idéias religiosas era a Bíblia. A obra de Calvino, como comentarista bíblico, serve para reforçar a impressão geral que alguém adquire, a partir de uma leitura mais cuidadosa das Institutas: a de que ele considerava a si mesmo como um obediente expositor da Bíblia. Textos, contudo, demandam interpretação. Calvino tinha acesso às principais técnicas da teoria literária, do criticismo textual e da análise filológica que a Renascença havia colocado à sua disposição e não teve dúvidas em usá-las. Ele era um humanista e empregava as técnicas do mundo das letras a seu serviço, como expositor bíblico.

Embora a principal preocupação de Calvino fosse a interpretação das Escrituras, sua leitura desse texto era informada e enriquecida pela tradição cristã. Ele não hesitava em desenvolver a tese que havia, originalmente, defendido na Disputa de Lausanne - a tese de que a Reforma representava a restauração dos autênticos ensinamentos da Igreja primitiva, com a eliminação das distorções e das adições ilegítimas do período medieval. Sobretudo, Calvino considerava seu pensamento como uma exposição fiel das principais idéias de Agostinho de Hipona: "Agostinho é totalmente nosso!". Ele tinha em alta conta alguns dos anteriores escritores medievais, tais como Bernard de Clairvaux. Embora tivesse a tendência de considerar a antiga teologia medieval como algo irrelevante, é evidente que Calvino incorporou em seu pensamento pelo menos alguns de seus métodos e pressupostos. Seu voluntarismo e o apelo sutil ao método lógico-crítico são exemplos de uma afinidade ligada não necessariamente a algum escritor ou escola de pensamento em particular, mas ao acervo intelectual característico da teologia contemporânea. Por fim, sua dívida frente à primeira geração de Reformadores é em tudo evidente - a Lutero, a seu amigo Bucero, de Estrasburgo, e ao erudito Filipe Melanchthon, para mencionar apenas três deles.

Obviamente, é impossível fornecer uma análise detalhada do pensamento de Calvino no espaço do qual dispomos. Nossa proposta é, portanto, apresentar um resumo do Cristianismo segundo Calvino, da forma como é apresentado nas Institutas.

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